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Cristãos queimam Roma, ameaça comunista e dominação judaica: as mentiras que mancharam a história

Por History Channel Brasil em 14 de Outubro de 2020 às 20:29 HS
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No decorrer dos milênios, a humanidade sempre conviveu com mentiras, meias verdades e versões distorcidas dos fatos. Muito antes da existência do conceito de fake news, informações falsas ou exageradas foram usadas para interferir na opinião pública. Confira abaixo alguns exemplos de inverdades que se perpetuaram a ponto de influenciar a sociedade: 

Nero e o incêndio de Roma

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Em 18 de julho de 64 d.C. boa parte de Roma ardeu em chamas. Diversos rumores envolvem a origem do incêndio, mas a participação de Nero nunca foi esclarecida. Segundo o historiador Tibério, os boatos de que o imperador teria ateado fogo na cidade se intensificaram depois que ele mandou construir um complexo de palácios sobre as cinzas de edifícios destruídos durante a tragédia. Foi aí que Nero teria inventado uma das primeiras fake news da história: os cristãos seriam os verdadeiros responsáveis pelo incêndio.


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O fato marcaria o início de quase três séculos de perseguição romana contra os cristãos. O problema é que nenhuma fonte primária sobre o incêndio chegou aos nossos dias. Em vez disso, temos apenas relatos secundários dos historiadores Tácito, Suetônio e Cássio Dio. Tácito, a principal fonte sobre o assunto, escreveu seu relato cerca de sessenta anos depois do incêndio, assim como Suetônio. Enquanto isso, os textos de Cássio Dio sobre o fato foram escritos cem anos depois do fogo atingir a cidade. Os três relatos apresentam várias divergências, tornado  difícil a tarefa de desvendar a verdade por trás do incêndio.

De acordo com Tácito, como punição aos cristãos, Nero ordenou que eles fossem executados de forma grotesca: alguns eram cobertos com peles de animais e despedaçados por cães; outros eram mergulhados em alcatrão e usados como tochas humanas para iluminar o céu noturno; alguns deles também teriam sido crucificados. Segundo a tradição cristã, foi na esteira do incêndio que os apóstolos São Pedro e São Paulo foram presos e executados.

Mas estudos recentes sugerem que Nero é quem teria sido alvo de fake news. Tácito, Suetônio e Cássio Dio teriam exagerado ou inventado histórias para destruir a reputação do imperador. Sob essa nova abordagem, Nero seria celebrado entre o povo comum ao mesmo tempo em que era odiado pelas elites romanas. Textos encontrados nas ruínas de Pompeia revelariam que ele era admirado pela população, afirma Rebecca Benefiel, professora de estudos clássicos da Universidade Washington and Lee, nos Estados Unidos.

Já a elite teria antipatia pelo imperador porque ele se preocuparia mais com as artes do que com o governo. "Nero não conquistou triunfos militares como seus antecessores", disse Benefiel. Assim, muitos aristocratas de Roma teriam acusado Nero de atear fogo na cidade alegando que assim ele poderia avançar seus planos de construção de novos palácios sem necessitar da permissão do senado. 

Os Protocolos dos Sábios de Sião

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Uma das maiores farsas da história é fruto do antissemitismo.No final do século XIX, uma série de textos chamados Os Protocolos dos Sábios de Sião foram produzidos na Rússia com a finalidade de atribuir aos judeus uma fictícia conspiração para dominar o mundo. Embora sua origem seja envolta em mistério, alguns pesquisadores acreditam que os documentos foram forjados pela polícia secreta do czar Nicolau II.

Em 1903, partes dos Protocolos dos Sábios de Sião foram publicadas em série no jornal russo Znamya ("A Bandeira"). Após a Revolução Russa de 1917, czaristas que fugiram do país espalharam os protocolos pelo mundo (eles culpavam os judeus pelo movimento que derrubou Nicolau II). Logo depois, traduções do textos circularam pela Europa, Estados Unidos, América do Sul e Japão. Uma versão em árabe apareceu pela primeira vez na década de 1920.

Adolf Hitler já citava os Protocolos em seus primeiros discursos políticos, explorando o mito de que os "judeus-bolcheviques" conspiravam para controlar o mundo. Durante as décadas de 1920 e 1930, os Protocolos dos Sábios de Sião desempenharam um papel importante no arsenal dos nazistas. O partido de Hitler publicou ao menos 23 edições dos protocolos entre 1919 e 1939. 

Em 1921, o jornal britânico London Times apresentou provas conclusivas de que os Protocolos eram uma farsa. A publicação confirmou que os textos haviam sido copiados em grande parte de uma sátira política francesa que nunca mencionava os judeus: Diálogo no Inferno entre Maquiavel e Montesquieu, de Maurice Joly (1864). Outras investigações revelaram que um capítulo de um romance de Hermann Goedsche também "inspirou" os Protocolos. Apesar disso, até hoje o texto é usado para atacar os judeus.

Ameaça comunista: Getúlio, Plano Cohen e o Golpe de 64

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A "ameaça comunista" foi utilizada em momentos diferentes da história brasileira para justificar medidas autoritárias. Em 1937, o chefe do Estado-Maior do Exército brasileiro, general Góes Monteiro, anunciou no programa de rádio Hora do Brasil a descoberta de um suposto complô cujo objetivo era a derrubada do presidente Getúlio Vargas. De acordo com as autoridades, o chamado Plano Cohen havia sido elaborado pela Internacional Comunista. Entre as ações previstas no plano estavam atos terroristas para espalhar pânico entre a população, além da realização de sequestros e assassinatos de autoridades importantes.

Com base no Plano Cohen, o presidente Getúlio Vargas solicitou imediatamente ao Congresso autorização para decretar o estado de guerra pelo prazo de 90 dias. A aprovação da medida abriu caminho para o golpe do Estado Novo, desfechado em 10 de novembro de 1937. Mas tudo não passava de uma farsa que também continha uma boa dose de antissemitismo (Cohen é um dos principais sobrenomes judaicos). A fraude só foi revelada após a extinção do Estado Novo, em 1945. Na realidade, tratava-se de um plano simulado de ação comunista escrito como “hipótese de trabalho”, segundo seu verdadeiro autor, o capitão Olímpio Mourão Filho, chefe do serviço secreto da Ação Integralista Brasileira (AIB).

Anos depois, a "ameaça comunista" ressurgiu como um dos principais pretextos para o golpe de 1964. Os militares e seus aliados civis alegavam que o presidente deposto, João Goulart, planejava mudar o regime capitalista para o comunista em aliança com líderes internacionais de esquerda. Entretanto, não há nenhuma evidência histórica que sustente esse fato.

Relatos e documentos históricos mostram que nunca houve qualquer possibilidade real de revolução comunista ou mudança de regime nos anos 1960. Nem mesmo os militares pareciam acreditar nisso. Um informe do SNI (Serviço Nacional de Informações) de 9 de outubro de 1964 traz um extenso relato avaliando o comunismo no mundo e admite, entre outros pontos, que "o comunismo internacional perdeu o sentido revolucionário na Europa Ocidental e desgasta-se, dia a dia, nos países da Cortina de Ferro". No texto, os militares analisam que não há clima para a instalação do comunismo por conta das contradições "por demais violentas" do Brasil, afirmando que o povo não aceitaria "pacificamente as influências externas".

Em plena Guerra Fria, os Estados Unidos também temiam que o Brasil se transformasse em uma grande Cuba. Gravações de conversas entre o ex-presidente John Kennedy e o então embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Lincoln Gordon, comprovam a preocupação da maior potência do mundo com o caminho que vinha sendo trilhado pelos brasileiros.

A insatisfação do governo dos Estados Unidos em relação aos rumos do Brasil sob a presidência de João Goulart vinha desde o início de seu mandato. Algumas posições de Jango, como colocar em prática uma série de reformas, entre elas a reforma agrária, e as de seus aliados, como o governador do Rio Grande do Sul à época, Leonel Brizola, que desapropriou duas companhias dos EUA (ITT, do setor de telecomunicações, e Amforp, de energia elétrica), aumentou a crença nas informações, passadas por Gordon, de que o país caminhava para adotar o regime comunista.

Desde 1962, o embaixador vinha tentando convencer o Departamento de Estado dos EUA de que Jango estava formulando um perigoso movimento de esquerda, estimulando o nacionalismo. Na opinião de Gordon, era fundamental organizar as forças políticas e militares para reduzir o poder de Goulart e, em um caso extremo, afastá-lo, já considerando o golpe. Após o assassinato de Kennedy, o embaixador continuou discutindo o assunto com o presidente Lyndon Johnson.

John Dingens, professor da Universidade de Columbia, afirma que os Estados Unidos participaram ativamente para minar o governo Jango. "O registro histórico é claro", destaca. "Por causa de um medo exagerado de uma repetição da revolução cubana - um cenário que observadores objetivos consideraram ser extremamente improvável, beirando a paranoia geopolítica -, o embaixador e agentes da CIA conspiraram e encorajaram militares brasileiros a depor o presidente eleito pelo povo brasileiro, João Goulart", avalia.


Fontes: ADL, Museu do Holocausto, Agência Brasil e FGV

Imagens: Henryk Siemiradzki (1843–1902)/National Museum Kraków, Hubert Robert (1733–1808)/Musee des Beaux-Arts Andre Malraux e Arquivo Nacional, via Wikimedia Commons